Helena Angélica de Mesquita
Professora do Curso de Geografia da UFG/Campus de Catalão
Corumbiara: o massacre dos camponeses. Rondônia/Brasil 1995 (Resumen)
O massacre de Corumbiara mostra que o conflito na fazenda Santa Elina tem as mesmas características de milhares de conflitos por terra que aconteceram e acontecem no Brasil, e que o massacre de Corumbiara tem a mesma gênese de tantos outros massacres acontecidos contra camponeses, posseiros e índios ao longo de quinhentos anos de luta pelo acesso e posse à terra, evidenciando que o país ainda não resolveu sua questão agrária.
No dia 14 de julho de 1995, centenas de famílias ocuparam uma pequena parte da fazenda Santa Elina no município de Corumbiara (Rondônia), e na madrugada do dia 9 de agosto aconteceu o massacre de Corumbiara. Os camponeses que viveram vinte e cinco dias de esperança da terra prometida, de repente, abismaram-se num inferno dantesco, onde homens foram executados sumariamente, mulheres foram usadas como escudos humanos por policiais e por jagunços; pessoas foram torturados por longas horas e o acampamento foi destruído e incendiado.
Na apuração dos fatos, nos processos judiciais e no júri, ficou evidenciado que os camponeses é que pagaram muito caro por terem sonhado com o acesso à terra e por terem ido à luta para concretizar aquele sonho, que, afinal, é o sonho de milhares de sem terra. Ninguém foi responsabilizado pelas torturas que aquelas pessoas sofreram, os órfãos e as viúvas estão desamparadas, existe gente desaparecida até hoje e muitos trabalhadores estão debilitados física e emocionalmente, por sequelas causadas pelos maus tratos recebidos durante a desocupação da fazenda Santa Elina.
Palavras chaves : massacre, conflito, camponês, sem terra, Corumbiara.
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Corumbiara: the peasant’s massacre. Rondonia / Brazil) 1995 (Abstract)
The Corumbiara’s massacre and shows that the conflict in Santa Elina farm has the same caracteristics of thousands of conflicts for land that happened and happen in Brazil; and that the Corumbiara’s massacre happened against peasants, possessors and indians during the five hundred years of fighting for the possession and access of the land, showing that the country haven’t solve these land questions yet.
In 1995, on July 14th, hundred of families occuped a small part of the Santa Elina farm in the borough of Corumbiara and in the earliness of August 9th, the Corumbiara’s massacre happened. The peasants lived twenty-five days of hope for the promissed land, sudden they stun in na anuful hell, where men were briefly executed, women were used as human shields by policemen and gun man; people were tortured for long hours and the camps was destroyed and afice.
In the examination of the facts, in the judicial processes and in the jury what was showed is that the peasants payed very expensive for having dreamed with the access of the land and for having gone to the figth for materializing that dream, after all, this is the dream of the thousands of landless. Nobody was blamed for the torture that those people suffered, the orphans and the widows are abandoned, there are people disappeared and many workers are phisic and emotionally debilitaded by residue caused because of bad treats received during the disocupation of Santa Elina farm.
Key-words: massacre, conflict, peasants, landless, Corumbiara.
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O massacre de camponeses que aconteceu em agosto de 1995, em Corumbiara, Rondônia, tem a mesma gênese de tantos outros impingidos aos camponeses, posseiros e índios ao longo de 500 anos de luta pelo acesso e posse da terra no Brasil, evidenciando que o país ainda não resolveu a questão agrária. No dia 14 de julho de 1995, centenas de famílias de sem terra ocuparam uma parte da fazenda Santa Elina e na madrugada do dia 09 de agosto, policiais e jagunços fortemente armados atacaram o acampamento, começando o massacre de Corumbiara. Posseiros foram executados sumariamente, mulheres foram usadas como escudo, camponeses foram torturados. Tudo isso prova que no Brasil ainda não se fez reforma agrária e que as políticas agrárias e agrícolas têm contribuído para aumentar a concentração fundiária e a violência no campo. Os trabalhadores, através de suas lutas, têm tentado romper os 500 anos de repressão (1).
A metodologia básica do trabalho foi a confrontação entre o processo judicial —Caso Corumbiara— e as falas dos camponeses que estiveram na Santa Elina. Em entrevistas com os camponeses foi possível perceber que todo processo e depois o júri foram constituídos no sentido de livrar fazendeiros, minimizar a responsabilidade do Estado e condenar os sem terra.
Este artigo é composto de três partes: a primeira trata da questão de posse e acesso a terra no Brasil. A segunda aborda o conflito da fazenda Santa Elina. A terceira enfoca o massacre de Corumbiara, ou seja, a transformação de um conflito por terra em uma tragédia sem precedentes.
A questão de acesso e posse da terra no Brasil
A ocupação capitalista da terra, no Brasil, tem sido violenta, uma violência principalmente contra os historicamente expropriados, marginalizados. A expropriação e a marginalização são por si mesmas expressões de violência. É preciso compreender que, se é senso comum, dizer que a pobreza gera violência, necessário se faz entender que a pobreza em si mesma é a violência gerada, não pelos pobres, que são as vítimas, mas é resultado de séculos de políticas que legitimam o latifúndio e privilegiam os grupos econômicos, dos quais os governos brasileiros têm sido reféns.
Na maioria dos estudos e das informações sobre a questão da luta pela terra, as categorias que mais aparecem são o posseiro e o fazendeiro, mas outros agentes também estão presentes: o Estado e o Capital são partes consideráveis do mesmo processo. E o presente trabalho mostra como foi, e é importante o papel do Estado, com governos e governantes subservientes ao grande capital, na construção/apropriação do espaço agrário.
A proposta de um estudo mais aprofundado poderia ser sobre Canudos, Contestado, Corumbiara ou Eldorado do Carajás, pois a luta é secular e são vários os momentos de maiores tensões e mortes no atacado e varejo. Quanto ao lugar poderia ser em qualquer parte do Brasil, pois os conflitos estão presentes onde estão as cercas do latifúndio.
Ao eleger Rondônia e especialmente o massacre de Corumbiara, um dos objetivos foi dialogar com as evidências e ir além das mesmas, para provar que aquele episódio, assim como Canudos, faz parte de um Brasil que muitos brasileiros não conhecem, e não conhecem porque foram construídos mecanismos de soterramento de memórias, memórias estas que incomodam quem registra a história oficial. Este trabalho resgata e registra uma outra história. A história da luta pela terra, sob o ponto de vista dos lutadores. A história oficial já está fartamente registrada nas mais de 10.000 folhas que compõem o processo judicial, está nas páginas da imprensa e até mesmo nas dezenas de relatórios que foram feitos sobre o episódio. Para alcançar este objetivo foi necessário uma revisão bibliográfica sobre a questão agrária, e debruçar sobre a fonte oficial que é o processo judicial, mas o mais importante foi ouvir os camponeses que estiveram na Santa Elina. Para isso foi necessário uma pesquisa de campo que demandou 8 viagens a Rondônia, inclusive para assistir ao júri popular, que aconteceu em Porto Velho, no período de 14/08 a 06/09/2000.
A história do Brasil é uma história de concentração e exclusão. Concentração de terras e de rendas e consequente exclusão de considerável massa de trabalhadores da possibilidade de acesso a terra, ao trabalho e a cidadania.
A história da exclusão começou junto com a própria história do país. Inicialmente os excluídos foram os índios, primeiros habitantes mas tidos como inexistentes, pois mesmo recentemente são feitas referências a região Amazônica como vazio demográfico que precisa ser ocupado. Em seguida, são excluídos os negros, que trazidos na condição de escravos, são excluídos antecipadamente, e saem da história do Brasil no dia 13 de maio de 1888, quando deixaram de existir como escravos mas não chegaram a existir como cidadãos. Para confirmar tudo veio a República dos latifundiários, das oligarquias agrárias legitimadas pela Lei de Terras de 1850. Então estes excluídos reagem de diversas formas e em vários campos de lutas.
Conflitos no campo, no Brasil, não são uma exclusividade de nossos tempos. São isto sim, uma dos marcas do desenvolvimento e do processo de ocupação do campo no país (OLIVEIRA, 1989: 15).
As tensões e os conflitos acabam sendo expressões da luta pela terra. O que é óbvio é que os meios de comunicação sempre noticiam os conflitos de maior intensidade, principalmente quando é possível mostrar a violência por parte dos sem-terra. É como se a guerra no campo fosse unilateral e inevitável.
O curso da história oficial, escrita, registrada pela classe dominante, é uma história de mitos e heróis, sem povo, sem contexto. A História do Brasil tem sido pródiga nesse sentido. E um dos objetivos do presente trabalho é produzir uma outra história. A história de homens que lutam, de lugares que são os campos de batalha. É a reconstrução da história, a história da luta e dos lutadores.
Cada conjuntura que o Brasil atravessa tem servido para reforçar a estrutura fundiária cada vez mais concentrada e que a cada vez, exclui maiores parcelas de trabalhadores do acesso à terra.
A história tem mostrado que os desterrados e desterritorializados têm-se organizado e têm enfrentado esta estrutura secular de dominação e espoliação. Os camponeses têm conseguido romper este cerco e, de certa forma, colocar a questão em evidência, além de provocar a discussão na sociedade. Em certas situações, têm provocado até indignação, que por si só não resolve os problemas, mas pelo menos, é uma forma de provar que algo está errado na condução da política brasileira em geral e em especial, nas políticas agrárias e agrícolas.
Os meios de comunicação têm notificado que, no governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), a reforma agrária está acontecendo, porque se tem assentado um número grande de famílias. Mas segundo o professor Mançano (2), os assentamentos não se constituem em reforma agrária, porque, em sua maioria, são criados a partir de ocupações promovidas pelos camponeses, e então o governo é forçado a agir. Das 299.332 famílias assentadas no governo FHC, 256.467 (3) são famílias que ocuparam terras. Mas os assentamentos, apesar de necessários e eficientes, não alteram o poder dos latifundiários, porque a estrutura básica dos latifúndios continua intocada e intocável.
Se o governo FHC está promovendo a reforma agrária, por outro lado está aumentando as dificuldades dos pequenos produtores e reduzindo os empregos no campo, e o que é mais grave, a repressão aos movimentos dos trabalhadores tem sido muito mais pronta e ferrenha. Mesmo assim surgem novas formas de reivindicações e protestos. Novos movimentos surgem nas cidades e no campo evidenciando a resistência do povo.
A era FHC está definitivamente marcada pela violência, pelo agravamento das diferenças sociais e pela mais lastimável impunidade. O primeiro mandato foi marcado por conflitos por todo o país e a repressão aos conflitos resultaram em grandes massacres, tais como o de Corumbiara e o de Eldorado do Carajás, sem falar os massacres urbanos, e o segundo mandado já foi implantado com o estigma da corrupção.
Os conflitos estão presentes em quase todos os lugares no Brasil, e na Amazônia não tem sido diferente. Mas há, naquela região, o agravante que foi a transformação da fronteira geográfico/econômica em fronteira geopolítica. A apropriação do território tem sido marcada pela forte presença de latifundiários, muitos deles grileiros, que atuam com a conivência do Estado, constituindo, inclusive, milícias particulares compostas por jagunços e pistoleiros.
O massacre de Corumbiara é a explicitação desta situação, cuja gênese está nas políticas agrárias que ao longo de séculos legitimam o latifúndio.
O conflito da Fazenda Santa Elina era tão somente uma ocupação de terras improdutivas, e o massacre de Corumbiara mostrou como agem e reagem as elites do poder nesse país frente as reivindicações dos trabalhadores.
Corumbiara é um tempo presente, é o lugar onde ainda ecoam os gemidos dos posseiros, os gritos das crianças, o desespero das mães... tudo ainda acusa, denuncia e clama por justiça.
Rondônia é uma área de ocupação capitalista recente. Na década de 70 e 80, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), como órgão coordenador da política agrária, criou os Projetos Integrados de Colonização (PIC), os Projetos de Assentamento Rápido (PAR) e os Projetos de Assentamento Dirigidos (PAD). Os Projetos de Assentamentos (PA) por sua vez só foram criados a partir das ocupações feitas pelas famílias que acabaram sobrando dos projetos de colonização.
O modelo de política de colonização funcionou como atrativo para populações de outras regiões do país, e o seu desdobramento gerou uma brutal diferenciação entre os seguimentos de migrantes. Aqueles que possuíam capital financeiro e influência política, se apropriaram das melhores áreas e das melhores terras, para expandirem seus empreendimentos ou simplesmente, se apoderarem das terras como reserva de valor. Os que para Rondônia se dirigiram, porque já haviam sido desterrados de outros lugares, quando conseguiam entrar nas terras, acabavam por valorizá-las com o seu trabalho e contraditoriamente torná-las, assim, inacessíveis a eles mesmos. Vêem então, seus sonhos frustrados pela ação dos grileiros e fazendeiros com a conivência dos organismos do Estado. Surge aí, um considerável contingente de sem terras que não se conformam com a situação e, organizados ou não, ocupam as áreas improdutivas, e em muitos casos, forçam o INCRA a tomar medidas para assentá-los. Dezenas de assentamentos de Rondônia, tiveram suas origens em ocupações. Este é o caso do PA Adriana (4), o PA Verde Seringal e Vitória da União no mesmo município, que também foram oriundos de grandes lutas.
Para construir este trabalho utilizei algumas informações obtidas dos relatórios da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Movimento Camponês Corumbiara (MCC), Comissão Pastoral de Terra (CPT), textos de notícias da Imprensa em geral, depoimentos e testemunhos, que foram as fontes mais importantes. Priorizei as informações fornecidas pelos próprios camponeses, especialmente os que estiveram na Santa Elina, pois a história oficial já havia encarregado de registrar os fatos e os números da tragédia. Nesta história oficial os camponeses foram aqueles que emboscaram, desobedeceram, mataram, construíram trincheiras e até casamatas, invadiram propriedade alheia, são bandidos, traficantes, terroristas...
O Conflito da Santa Elina
No dia 14 de julho, em caminhões provenientes de diversos pontos do município de Corumbiara e das estradas próximas, centenas de famílias chegaram à fazenda Santa Elina. Levaram com eles tudo que possuíam, especialmente a grande esperança de conquistar a terra. O local escolhido para o acampamento ficava junto a área comunitária do PA Adriana, apenas separadas por um pequeno riacho. A idéia era: assim que o cerco ao acampamento se tornasse insustentável, os posseiros se locomoveriam para aquele lugar, onde havia, um campo de futebol na área comunitária do PA. Entretanto, nos dias 8 e 9 de agosto, a Polícia Militar (PM) montou o seu Comando de Operações (QG) naquele local. A coordenação escolheu a Santa Elina em função de notícias que haviam sido publicadas na imprensa regional, afirmando que a área não estava regularizada, e era em grande parte área improdutiva. Nenhuma notícia da imprensa ou mesmo os autos, ou em qualquer informação dava a extensão correta da Santa Elina. Os números noticiados a respeito da sua dimensão variavam de sete mil a dezesseis mil hectares, mas na realidade ela tem cerca de vinte mil hectares (5).
Do dia 14 de julho até 8 de agosto a ocupação da fazenda Santa Elina era mais um dos quatrocentos e quarenta conflitos de terra que aconteceram em 1995 no Brasil e um dos quinze que aconteceram só em Rondônia naquele ano (6). Portanto, pode-se concluir que no dia 14/07/95 estava começando o que foi uma tragédia anunciada: O Massacre de Corumbiara.
A escolha da área para a ocupação e o local exato para montar o acampamento foi estratégica por várias razões, primeiro, porque os acampados precisariam de água potável, e o pequeno riacho tinha águas cristalinas. Segundo, a proximidade com o PA Adriana, afinal dois dos mobilizadores eram lá assentados, e muitos moradores apoiaram a ocupação e ajudaram os companheiros. Naquele PA os acampados da Santa Elina encontrariam ajuda e guarida em caso de ataque. Terceiro, a área do lote ocupado era muito fértil e poderiam plantar suas roças imediatamente.
O acampamento ficava em uma espécie de canto do lote, tendo à frente e ao lado esquerdo o PA Adriana e isso nos planos dos coordenadores, facilitaria uma rota de fuga entrando direto em campo amistoso. Foi por onde muitos se salvaram, especialmente os que conheciam a área. Os posseiros sabiam que se errassem o rumo e entrassem dentro da Santa Elina os jagunços estariam esperando armados.
Os caminhões levando os camponeses na madrugada do dia 15 de julho, chegaram até o campo de futebol do PA Adriana. O deslocamento até o local que seria o acampamento foi feito a pé, pois não haviam estradas e a distância era pequena, cerca de um km. Os caminhões chegaram juntos uns dos outros. Os posseiros tinham uma grande preocupação e medo dos jagunços, por isso procuravam estar juntos em grandes grupos. O transporte das poucas coisas que trouxeram como colchões , lonas, comidas, cacaios e outros objetos, foi feito nas costas e em mutirão. Esta atividade durou o resto da madrugada e quando o dia clareou já estava quase tudo depositado, numa pequena clareira que fora aberta ainda durante a madrugada. Quando o dia amanheceu, no dia 15, sábado, as atividades eram intensas, no sentido de transformar aquele pequeno pedaço de mata em um acampamento de sem terras. Todos trabalhavam. Os participantes descreveram a chegada como momento de grande apreensão, pois tinham medo que jagunços aparecessem e frustrassem os seus planos.
Era muito barulho, barulho de motosserras (7), de picaretas, árvores caindo, foices limpando tudo. Muita gente falando, cantando e gritando, dando ordens, organizando. Todos se preocupavam com as crianças, que eram muitas. Logo pela manhã foram escolhidas algumas pessoas para tomarem conta dos piazinhos, para não deixar que se machucassem ou se perdessem. Alguns homens foram destacados para manter vigilância, especialmente no fundo e no lado direito do acampamento, pois era mata fechada dentro da própria Santa Elina.
Como era área de mata, os barracos foram construídos sob as árvores mais altas porque elas ofereciam sombra e podiam camuflar e esconder a pequena cidade de lona dos constantes vôos de intimidação, realizados pelos fazendeiros e pela própria polícia.
No começo da tarde de sábado foi servido o almoço coletivo, foi uma festa, todos já se sentiam como uma grande família, com direitos e obrigações. Uma comissão já circulava com um caderno de anotações onde cadastravam todas as pessoas que estavam no acampamento e anotavam os nomes dos que chegavam..
Os homens começaram a derrubada para fazer uma roça comunitária, onde seria plantado arroz, milho, feijão e mandioca. Os posseiros derrubaram a mata em volta do acampamento para fazer a roça, mas isso acabou facilitando a agressão e dificultando a fuga pela mata, pois assim que a derrubada foi incendiada durante o ataque ao acampamento, aquela rota de fuga foi prejudicada.
Na tarde do dia 15 de julho mais de cinquenta barracos já estavam montados. À medida que o tempo passava, mais barracos iam sendo construídos, pois mais gente ia chegando. No dia 8 de agosto eram cento e cinquenta e quatro barracos. Tinha barraco que abrigava mais de uma família, e os solteiros também ficaram em barracas com até cinco pessoas.
Em pouco tempo o acampamento já estava funcionando com as comissões, alguns coordenadores tinham sido designados antes mesmo da ocupação, enfim formaram as equipes e começaram a trabalhar e o acampamento era uma realidade. Mas uma realidade muito precária como afirmou Sebastião Salgado:
Os menores de rua, os favelados são aqueles que desistiram de lutar para ficar na terra.O acampamento é pior que campo de refugiados, são absolutamente abandonados e são às vezes atacados, mas resistem pela esperança de possuir a terra e ter dignidade (8).
Enquanto os posseiros organizavam o seu acampamento, os fazendeiros já agiam. Especialmente Antenor Duarte do Valle, proprietário de grandes latifúndios, pressionava a justiça e a polícia. O processo de reintegração de posse foi sumário. Alguns fazendeiros, vizinhos da Santa Elina, obtiveram na justiça, liminar de Interdito Proibitório. Vale dizer que estas fazendas deveriam então, ter guarda da PM e se elas fossem invadidas por sem terra, a reintegração de posse seria sumária. A liminar de reintegração de posse da Santa Elina também foi sumária, três dias depois da ocupação já existia liminar de manutenção de posse e no mesmo dia a PM já estava na área para fazer cumprir a mesma.
Nos casos de ocupação de terras no campo brasileiro, quando feita por trabalhadores, a justiça tem sido sempre rápida, no sentido de atender os latifundiários, e no caso da Santa Elina, não foi diferente. A justiça foi rápida na expedição da liminar de manutenção de posse, e no dia 19, houve uma tentativa frustrada de desocupar a área.
O juiz substituto de Colorado do Oeste, Roberto Gil de Oliveira emitiu a liminar de manutenção de posse no dia 18 e no mesmo dia envia ofício determinando escolta policial para fazer cumprir a liminar, ou seja, para acompanhar o oficial de justiça que deveria ir até o acampamento dar ciência da liminar aos posseiros. Em seu depoimento no júri, o comandante da operação, o major Ventura explicou que recebeu o mandato de reintegração de posse em 19/07 e designou um tenente para acompanhar o oficial de justiça que iria cumprir o mandato, mas segundo o Major Ventura o Mena Mendes se ofereceu para a missão, e o capitão Mena Mendes diz que se ofereceu porque o Major Ventura tinha designado um aspirante para a missão. Essa afirmação do capitão Mena Mendes (9) foi desmentida pelo presidente do Inquérito Policial Militar (IPM), coronel Balbi, pois na ocasião não havia aspirantes na corporação. O Major Ventura, quando soube do que aconteceu no dia 19 de julho no acampamento, ou seja, a tentativa frustada de cumprir o mandato, afirmou que protelou ao máximo o cumprimento da determinação judicial, porém recebeu pressões do juiz, do poder executivo, via comando geral da polícia militar, do fazendeiro e de advogados, chegando ao ponto de ser alertado de que seria processado por desobediência caso não desse cumprimento àquela ordem (10). As palavras do major contêm as provas das pressões que os fazendeiros e políticos fizeram sobre todos.
Na quarta feira de manhã, dia 19 de julho, começou o pesadelo para os acampados da Santa Elina. Em cima do morro estouraram três foguetes alertando e avisando que tinha problemas. Era um aviso que havia polícia por perto. Todos ficaram alertas e se reuniram rapidamente na parte da frente do acampamento. Por volta das 9 horas da manhã lá estava o capitão Mena Mendes com trinta e cinco policiais acompanhando o oficial de justiça, no acampamento dos posseiros. Os posseiros fizeram uma barreira humana em frente ao acampamento, às margens do riacho, e não permitiram a entrada deles no mesmo. Eles já traziam duas pessoas presas, uma mulher que saíra para trabalhar, e o secretário do STR de Corumbiara.
Os posseiros fizeram muito barulho, muitos gritos, músicas e palavras de ordem, em seguida, fizeram silêncio e o oficial de justiça leu o mandato de manutenção de posse com voz trêmula.
Neste dia, os posseiros resistiram, e como eram em número muito maior gritaram e garantiram sua permanência na área. Houve inclusive um confronto e um posseiro levou um tiro de revólver calibre 38, pelas costas.
Depois dessa visita os camponeses fizeram uma assembléia e comemoraram a primeira batalha vencida, naquilo que seria uma guerra. No dia 20/07 o mesmo juiz substituto envia outro ofício requisitando reforço policial para o cumprimento da liminar, mas o juiz recomenda ponderação e cautela.
Quando o juiz titular, Glodner Luiz Pauletto reassumiu seu cargo encaminhou ofício ao comando geral da PM em Porto Velho reiterando os ofícios anteriores, o primeiro dirigido ao comando de Colorado do Oeste e o segundo dirigido ao próprio capitão Mena Mendes. O ofício foi expedido em 01/08 e recebido no mesmo dia pelo comandante geral da PM no Estado coronel Wellington Luiz de Barros Silva em Porto Velho. Nessa data a Companhia de Operações Especiais (COE) já estava se preparando para ir à Corumbiara.
Enquanto os fazendeiros articulavam tudo para varrer os posseiros do local, os mesmos recebiam apoio dos vizinhos, de alguns políticos, especialmente o vereador Manuel Ribeiro, o Nelinho, do Partido dos Trabalhadores e o suplente de vereador Sebastião Sobrinho, do presidente da Assembléia, do deputado Daniel Pereira e do Sindicato dos Trabalhadores de Corumbiara (STR).
O vereador Nelinho se movimentava no sentido de colocar a questão nos noticiários como forma de chamar a atenção para a gravidade da situação, e acreditava que assim poderia sensibilizar a sociedade para a causa dos camponeses. Para Nelinho seria também uma forma de proteger os sem terra. O que Nelinho mais temia era a ação dos jagunços. Nessa altura dos acontecimentos a ocupação já era notícia nos jornais regionais e nacionais.
Na reunião da Câmara de Vereadores de Corumbiara, no dia primeiro de agosto, Nelinho comentou sobre a comissão de negociações a qual acompanhava, cobrou providências das autoridades no sentido de evitar uma tragédia. O vereador tinha esperança que a liminar fosse suspensa até que a comissão pudesse fazer alguma coisa. Mas a força do latifúndio se impôs mais uma vez. O latifúndio fazia pressões sobre juiz, polícia, e o próprio governador. A Sociedade Rural, braço da União Democrática Ruralista (UDR), pressionava o governador exigindo o cumprimento da liminar e exigindo que o comandante da polícia de Vilhena fosse preso por omissão porque protelava o despejo.
O governador tinha conhecimento real da situação da Santa Elina e não tomou nenhuma providência no sentido de evitar a tragédia que já se anunciava. O secretário de agricultura, que era do Partido dos Trabalhadores, também tinha conhecimento da situação, e foi omisso. Muitos foram omissos.
A correlação de forças era brutalmente desfavorável para os posseiros. Os opositores dos camponeses puderam agir em todos os sentidos. No plano jurídico, pressionando juízes, conseguindo liminar em tempo recorde e ofícios que circularam céleres, colocando as notícias nos jornais e nos demais meios de comunicação sempre a seu favor e desqualificando os camponeses. No plano econômico, foi também muito forte a influência dos fazendeiros, pagando transporte para a tropa, fornecendo alimentação, fornecendo veículos, infiltrando jagunços junto às tropas e emprestando avião e piloto para a PM sobrevoar a área do acampamento. Na verdade, ficou caracterizado que o massacre foi uma empreitada particular, financiada por particulares, onde a polícia estava a serviço de fazendeiros e até certo modo sob o "comando" dos mesmos. Antenor Duarte foi visto no QG da PM e seu capataz José Paulo Monteiro estava tão à vontade naquele lugar, que tirou o posseiro Sérgio (11) dentre os presos, jogou-o dentro de uma Toyota e nenhum policial, oficial, subcomandante ou o comandante, "viu". Os camponeses viram e denunciaram mas suas vozes foram caladas (12).
Ficaram poucos dias na área, mas o acampamento estava organizado, com as diversas comissões encarregadas de tarefas que proporcionavam o melhor andamento possível da vida no mesmo. No dia 08/09, a imprensa de Vilhena registrou as condições do acampamento e a movimentação dos camponeses com a chegada da polícia.
O acampamento dos posseiros era vigiado por pessoas da Santa Elina que informavam ao capitão Mena Mendes sobre os passos dos posseiros. O PM Walter de Souza informou que no dia 8/08 o capitão Mena Mendes, esteve na residência do caseiro da Santa Elina, e nesse mesmo dia ele fez reconhecimento da área do perímetro do acampamento(13).
Os posseiros ficaram no acampamento somente vinte e quatro dias. Foram momentos muito marcantes para todos. Momentos de tensão e medo quando o acampamento era sobrevoado por aviões. Muito medo quando da primeira tentativa de evacuar a área. Mas estes momentos eram intercalados com outros de confraternização e muita esperança. A esperança e até uma certa dose de otimismo surgiu, durante a visita da comissão de negociação (14), e depois da saída da mesma. As conversas foram animadoras e cheias de esperança com a possibilidade de intervenção daquelas autoridades, para resolver o problema e no mínimo suspender, ainda que temporariamente, a execução da liminar de manutenção de posse. Outro fator que dava alguma tranquilidade era a possibilidade estratégica de saírem da área e ir para o PA Adriana. Eles planejaram correr para o PA Adriana se o cerco ao acampamento se tornasse insustentável e armariam novo acampamento no campo de futebol. Os coordenadores tinham planejado este detalhe. Sabiam que poderiam ficar acampados naquele local, do PA Adriana, onde a PM e os jagunços perderiam a possibilidade de atacá-los, pelo menos legalmente. Afinal naquele campo eles seriam os convidados dos amigos assentados. Assim, através dessa estratégia, apreendida com as experiências do próprio Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), logo que a situação "esfriasse" voltariam para a Santa Elina. No caso da ocupação do PA Adriana, chegaram a ser despejados da área por três vezes. Tudo indica que no caso da Santa Elina, os opressores queriam mais que um despejo, queriam uma "lição de violência", para que as ocupações cessassem na região.
No dia 08 de agosto, chega em frente ao acampamento o Comandante Ventura e a imprensa de Vilhena. Há uma conversa amistosa entre o comando da PM e os representantes dos posseiros, testemunhada pela imprensa. Depois da conversa com o Major Comandante, os posseiros comemoraram, pois pensaram que tinham vencido mais uma batalha. O que eles não sabiam era que seus opositores estavam ali preparados para fazer uma guerra, uma guerra contra mulheres, crianças, jovens e velhos. Suas armas de defesa e caça eram dois revólveres, um calibre 38 e outro 22 e espingardas velhas que usavam para a caça, e as ferramentas de trabalho, inclusive motosserras, emprestadas por quem queria ajudar.
Em contrapartida as armas da PM (15), somente de policiais do 3o Batalhão de Polícia Militar (BPM), foram: cento e setenta e cinco revólveres calibre 38; doze escopetas de calibre 12; cinco metralhadoras de 9mm; quatro pistolas; cinco mosquetes calibre 7,32; e cinco carabinas. Isso sem contar as armas da COE, dos PM que estavam de férias e estavam a serviço do fazendeiro, e ainda as armas e munições dos jagunços e da chamada PM2. Somente parte das armas da PM foram periciadas e só três provas de balística foram positivas. As três balas eram de revólveres de PM e foram encontrados nos corpos de Hercílio e José Marconde, posseiros que foram executados sumariamente como atestam os laudos tanatoscópicos.
Mesmo com tantas evidências as autoridades de Rondônia insistem em negar que houve massacre em Corumbiara. Tanto o juiz de Colorado do Oeste, como o promotor não aceitam chamar o episódio da Santa Elina de massacre. E o promotor assim o definiu: Não houve massacre porque ninguém foi massacrado, houve um conflito onde, infelizmente, algumas pessoas morreram (16).
A imprensa, naquele episódio, teve papel muito importante, pois registrou em áudio e vídeo momentos relevantes dentro do acampamento e na entrada do mesmo, conversou com posseiros e gravou uma longa entrevista com um dos coordenadores do acampamento, que com muita clareza e objetividade, explicou as condições que estavam ali, quem os apoiava, as necessidades daqueles camponeses e a firme decisão de lutar pela terra, e fez graves denúncias sobre as pressões que os posseiros da Santa Elina e até assentados dos PA próximos estavam sofrendo de jagunços e dos fazendeiros.
O Massacre de Corumbiara
Na madrugada do dia 09/08 o acampamento da Santa Elina foi cercado por todos os lados e começou o que foi o massacre de Corumbiara.
Os posseiros foram pegos de surpresa, pois era noite escura e eles estavam desmobilizados.
Os posseiros foram acordados com bombas de gás lacrimogênio que a todos sufocavam, tiroteio por longas horas com armas muito pesadas, mulheres foram usadas como escudo humano pelos policiais e por jagunços. Segundo relatos um grande número de jagunços, alguns vestidos como policiais entraram infiltrados no meio das tropas e muitos homens estavam encapuzados. O acampamento foi totalmente destruído e depois incendiado. Não sobrou nada do que os camponeses haviam levado para começar o que seria uma vida nova. Tudo se transformou em pesadelo.
O que aconteceu naquela noite e naquela manhã, não foi testemunhado pela imprensa, mas as marcas estão presentes naqueles corpos e naquelas almas que sofreram torturas indescritíveis mas os que sobreviveram puderam contar o que aconteceu ali, embora suas vozes tenham sido sufocadas, desqualificadas, ou simplesmente ignoradas durante as apurações processuais e durante o júri.
Os homens que não morreram ou não conseguiram fugir pela mata foram presos e obrigados a se deitarem no chão com o rosto na lama e policiais e jagunços pisavam sobre eles e os espancavam com chutes em todas as partes do corpo e davam pauladas em qualquer um que ousasse levantar a cabeça. Depois foram amarrados com cordas e arrastados até o QG da PM, no campo de futebol do PA Adriana, como mostra a foto que ilustra esse artigo (figura 1). Os homens ficaram por longas horas, sem água, sem comida, apanhando e sofrendo todo tipo de humilhações. As mulheres e as crianças também ficaram presas em cima de caminhões por longas horas sob um sol escaldante passando fome e sede. Os posseiros foram presos, mortos e torturados e o acampamento foi completamente destruído.
Figura 1
Camponeses presos após o despejo da Fazenda Santa Elina.
Corumbiara, Rondônia, Brasil.
Autor: Eliseu Rafael de Sousa. Corumbiara, 09 de Agosto de 1995.
Em todas as entrevistas e conversas com os camponeses que estiveram na Santa Elina e seus vizinhos há uma coerência e coincidência nas informações ao descrever o ataque ao acampamento, a entrada dos jagunços e policiais, espancando, atirando e torturando, depois de rendidos, a continuação das torturas e execuções, a retirada dos posseiros presos no local do acampamento até o campo de futebol. Homens e meninos eram arrastados e espancados sistematicamente, foram obrigados a comer terra molhada com sangue. Além de todas as torturas físicas ainda os constrangimentos morais e psicológicas e as agressões com palavras e gestos.
Os depoimentos dos posseiros comprovam que houve realmente um massacre em todos os sentidos da expressão. A vida daquelas centenas de pessoas ficou à prova desde o momento que foi atirada a primeira bomba de gás dentro do acampamento até a chegada do advogado da CPT na delegacia de Colorado do Oeste, no dia 10 de agosto, ou seja, aqueles camponeses viveram mais de vinte e quatro horas de torturas ininterruptas.
Durante todo esse tempo os camponeses foram torturados porque os torturadores queriam saber quem eram os líderes e onde eles estavam. Isto equivale a dizer que aqueles que lideraram aquela ocupação já haviam sido julgados e condenados sumariamente por quem organizara aquela ação repressiva.
Homens, mulheres e crianças foram impedidos de se alimentar, de beber água e inclusive de fazer as necessidades fisiológicas, ficaram ouvindo ameaças de morte, olhando para os mortos estendidos no chão, vendo companheiro sendo retirado e jogado em Toyota. As crianças que não podiam nem chorar em voz alta. Mães tinham de colocar a mão na boca das crianças para que elas não gritassem. Outras mães separadas de filhos, maridos separados de esposas. Era o desespero de não saber onde estava o seu ente querido, se vivo ou morto e não poder sequer perguntar. Via-se um amontoado de homens sentados quase uns sobre os outros (figura 1).
O próprio major Ventura declarou em seu depoimento que, quando voltou do acampamento dos posseiros para o QG, depois do despejo consumado, ali estavam cerca de setecentos e cinquenta pessoas e haviam inúmeros veículos Toyota, ônibus, caminhões e estavam civis portando armamento, e estes não eram da polícia civil, e o major disse ainda que viu, no acampamento, policiais pisando em cima de civis.
Os trezentos e cinquenta e cinco presos que estavam naquele campo foram transportados amontoados em caminhões até a cidade de Colorado do Oeste. Quando saíram do QG já estava escurecendo e o transporte foi a continuação do massacre. Os homens eram colocados uns sobre os outros dentro do caminhão e ainda continuavam sofrendo ameaças. O posseiro Moacir Camargo já estava no caminhão quando levou um tiro que lhe traspassou o corpo.
O transporte dos posseiros presos, do QG da PM até a cidade de Colorado do Oeste, foi a continuação das torturas, pois eles estavam amontoados nos caminhões e, como as estradas eram péssimas, os motoristas faziam questão de aumentar os seus sofrimentos indo em alta velocidade, dando solavancos e ferindo mais ainda aqueles corpos já tão machucados, tão famintos, sedentos, ameaçados...
Chegando em Colorado do Oeste, cerca de setenta desses presos foram encaminhados à delegacia de polícia, e os outros foram confinados no ginásio de esportes. Os presos que foram para o ginásio de esportes tiveram mais sorte, embora estivessem sob vigilância e não tivessem nenhuma assistência, não foram mais torturados fisicamente.
O padre José Maria, hoje bispo de Colorado do Oeste, chegou muito cedo ao ginásio e teve dificuldade para entrar, a polícia tentou impedir e ele descreveu o que viu. Ele disse que eram homens e meninos sujos, ensanguentados, famintos, feridos, desesperados. O padre tomou providências para alimentá-los. A população da cidade foi muito solidária com os posseiros e rapidamente foi providenciando roupas e alimentos para todos. Aquelas pessoas, centenas de mulheres e crianças e cerca de trezentos e cinquenta homens, só tinham a roupa do corpo, mesmo assim, muitos estavam rasgados e sujos de lama e sangue. Tudo que eles tinham foi queimado no acampamento.
Cerca de setenta presos que foram levados para a Delegacia de Polícia, não tiveram tanta sorte. Naquele lugar foram torturados cruelmente. Tiveram que tirar as roupas e ficar só de cueca. As roupas e calçados eram amontoados em uma sala. Um dos presos Antônio Urias descreveu a cena que ocorreu quando avisaram que o advogado da CPT estava chegando:
— Nós era mais de setenta homens presos na delegacia, e todos tiveram de tirar as roupas e os calçados e ficar de Zorba. As roupas e os calçados a gente ia jogando em um monte dentro de uma sala. Nós passamos a noite assim, sem roupa, sem comer e ainda apanhando e sofrendo as piores humilhações. Tinha companheiro que estava todo roxo, de tanto levar bordoadas. Aí já tinha amanhecido o dia, já era tarde. Aí os policiais chegaram gritando: "Sai, sai, corre, corre, pega as roupas e veste e os calçado e calça e é depressa, anda, anda seus porcos lerdos". Ali era debaixo de chutes e socos e cada um pegava a primeira roupa e o primeiro calçado. Não podia procurar a sua ou outro que servisse. Nós ficamos igual palhaço. As roupas fediam de sujas de suor, de terra e de sangue. Eu fiquei muito desajeitado porque vesti uma calça muito grande e num tinha cinto, aí tive que ficar segurando assim. Eles procuravam tudo quanto era modo de fazer a gente sofrer e ser humilhados. Não precisava nada daquilo. Nós era só uns coitados querendo terra para plantar.
Outra descrição de tortura (termo de inquisição folha 5.901 autos), inquérito: Ariovaldo Neckel de Almeida:
...Que o trio levou o depoente para os fundos da delegacia, onde havia uma veraneio abandonada e lá passaram a torturar o depoente, tentando obter alguma informação...
... Que nessa sessão teve sua mão direita apertada na porta da veraneio, e dedo da mão direita, o médio torado para retaguarda, chute nos órgãos genitais, nas costas, socos e pancadas simultâneas nos dois ouvidos que lhe provocaram hemorragias...
Os hospitais de Colorado do Oeste, Cerejeiras e Vilhena estavam lotados de posseiros feridos. Apenas Claudemir Gilberto Ramos foi deslocado do hospital de Vilhena para o hospital em Porto Velho. Claudemir estava correndo risco de vida porque tivera ferimentos muito graves, inclusive traumatismo craniano, resultado do espancamento que sofreu no acampamento por parte de policiais e jagunços. Ele corria ainda o risco de ser assassinado, pois sofreu um atentado quando estava no hospital de Vilhena e outro quando estava em Porto Velho.
Para aquelas autoridades era considerado ferido o posseiro que apresentasse lesões graves e principalmente ferimentos por projéteis de arma de fogo. Os que estivessem com a mão quebrada, pés feridos, costelas quebradas, hematomas externos, escoriações, mesmo cortes em diversas partes do corpo e até grandes cortes na cabeça não eram considerados como feridos.
Do lado dos policiais era o contrário, qualquer escoriação era considerado ferimento.
As notícias de que havia acontecido algo muito sério na Santa Elina começaram a circular no final do dia 9/08 mas só no dia 10/08 é que o Brasil e o mundo se consternaram diante das imagens de Corumbiara.
Aí vieram as explicações. Todos tentavam explicar o que era inexplicável.
O governador do Estado Waldir Raup em seus discursos culpou o INCRA pelo massacre e imediatamente atribuiu aos posseiros a responsabilidade por terem emboscado os policiais que estavam cumprindo ordens. O governador foi omisso durante aqueles vinte e quatro dias em que poderia ter interferido e quando o pior aconteceu, tomou a atitude mais cômoda, ou seja, transferiu culpas e responsabilidades.
Foram as explicações do prefeito de Corumbiara se queixando porque não foi notificado da operação; são explicações do comandante geral da PM dizendo que os policiais foram emboscados e que cumpriram o dever de proteger a propriedade.
Naquele dia 9 de agosto de 1995 morreram onze pessoas inclusive a pequena Vanessa, de apenas 6 anos que morreu com um tiro pelas costas que lhe trespassou o corpinho. Vanessa foi atingida quando sua mãe corria com ela e o irmãozinho em direção a mata. Corumbiara continuou fazendo vítimas.
Corumbiara continuou e continua fazendo vítimas
Nos casos de violência no campo, o que é mais evidente é que os que praticam todo tipo de violência contra os trabalhadores, contra religiosos, advogados, enfim contra todos os que questionam o latifúndio, é a certeza da impunidade. No caso da Santa Elina não foi diferente, porque Antenor Duarte e o seu capataz José Paulo estão impunes, apesar da ostensiva participação deles em todo o processo que culminou no massacre de Corumbiara.
Na investigação dos fatos, pode-se perceber como a justiça ignorou ou desqualificou os depoimentos dos posseiros e de todos que os apoiam, inclusive do Bispo Dom Geraldo Verdier, do padre, dos vizinhos... prevalecendo a voz dos próprios policiais e dos fazendeiros. O massacre de Corumbiara teve repercussões e consequências nacionais e internacionais e é um marco definitivo na história dos quinhentos anos de luta no campo.
Até hoje tem gente doente, morrendo ou sem poder trabalhar por causa das lesões sofridas. As viúvas e os órfãos estão desamparados. Ainda existe gente desaparecida até hoje.
Outra grande vítima de Corumbiara foi o vereador Nelinho, assassinado em dezembro de 1995, depois de ter sofrido muitas ameaças de morte. Os pistoleiros que emboscaram Nelinho foram controlados pelo vereador do PMDB, Percílio. O vereador do PT era filho de camponeses e um defensor de seus pares.
E no júri popular que aconteceu em Porto Velho no período de 14/08 a 06/09/2000, os sem terra Cícero Pereira Leite Neto e Claudemir Gilberto Ramos foram condenados, mesmo sem provas nos autos. Cícero e Claudemir são mais duas vítimas de Corumbiara e do latifúndio.
Na virada do III milênio, são cinco séculos do descobrimento da América, do Brasil. O tempo passou, mas não passaram os massacres contra os trabalhadores, contra os meninos de rua e meninos do campo. Não bastara o sofrimento impingido a eles pelo salário mínimo, más condições de vida e desemprego puro e simples, ainda são protagonistas de episódios como Candelária, Carandiru, Eldorado do Carajás, Corumbiara, Favela Naval e tantos outros locais que serviram de palco para massacres e execuções.
Os meios de comunicação são pródigos em mostrar toda sorte de violência: mortes, seqüestros, estupros, roubos, corrupção, invasão de terras e de prédios. É muito importante o papel da mídia para evidenciar tudo isso, porém, cabe fazer a distinção entre as mais diferentes formas de violência, os violentadores e os violentados.
Os meios de comunicação acabam homogeneizando e generalizando o que é muito diferente em gênese, causa e conseqüência.
As propostas do governo quando é chacoalhado por um episódio violento é anunciar medidas paliativas, tais como aumentar a repressão com mais armamento para a polícia, aumentar os efetivos militares, treinar melhor os policiais, proposta para a redução da idade de responsabilidade criminal, e aventa-se até a possibilidade de pena de morte, enquanto as pessoas que "podem", circulam em carros blindados e se escondem em fortalezas de muros e alarmes.
Mas até quando vai se sustentar tal situação?
Qual a perspectiva de mudança?
As causas desta situação não são mostradas pela mídia, mas são do conhecimento da maioria.
O Brasil é o segundo país em concentração de terras e em relação às desigualdades sociais, nas diferenças entre ricos e pobres, o Brasil é campeão absoluto. Num país onde os ricos ficam mais ricos, e muitas vezes acima da lei, e os pobres ficam cada vez mais pobres, qualquer política de natureza repressiva terá pouca eficácia. Criminalizar meninos de rua e sem terra, além de ser um exemplo da política medíocre, não resolve os problemas.
As ações das populações reprimidas e excluídas são classificadas de baderna e subversão da ordem, e os atores são tidos como marginais. Então toda essa baderna promovida por estes "marginais" tem uma causa muito mais séria do que aquela que é veiculada pela mídia. No fundo, entre outros problemas está a questão agrária não resolvida. Questão agrária no sentido mais amplo, que vai além da própria reforma agrária, que, no dizer de José de Souza Martins (17), seria a solução da questão, daquela que diz respeito à terras dos índios, dos posseiros, dos seringueiros, assim como às políticas agrícolas e agrárias, e até mesmo ambientais, que acabam por privilegiar o latifúndio.
Depois de Corumbiara veio Eldorado do Carajás. Quantas mortes mais serão necessárias para que aconteça a reforma agrária no Brasil? Esta é uma pergunta ainda sem resposta nesse início de terceiro milênio.
Notas
(1) Parte de tese de doutorado intitulada: Corumbiara: o massacre dos camponeses. Rondônia, 1995. (FFLCH/USP, 2001).
(2) Prof. Dr. Bernardo Mançano Fernandes. UNESP, Presidente Prudente.
(3) Folha de São Paulo, 02/01/2000. Brasil 1-11.
(4) O PA Adriana foi criado em dezembro de 1993, mas os camponeses só legalizaram seus lotes em 94.
(5) Relatório PLANAFLORO/PNUD, 1997 e escrituras.
(6) CPT. Conflitos no campo Brasil, 1995
(7) A comissão da derrubada foi a primeira a ser formada dentro do acampamento.
(8) Programa "Jô Soares onze e meia". 05/12/97 (reprise).
(9) O então capitão Vitório Régis Mena Mendes, hoje major, foi o subcomandante da operação de desocupação da Fazenda Santa Elina.
(10) Depoimento no júri em 06/09/00. Em entrevista, que não permitiu gravação, o coronel Ventura comentou sobre as pressões que sofrera naqueles dias.
(11) O jovem Sérgio Rodrigues Gomes estava preso junto aos posseiros no campo de futebol, foi retirado dali e 15 dias depois seu corpo foi achado em um rio a cerca de 70 km daquele local. O corpo tinha sinais evidentes de tortura.
(12) Aliás, os depoimentos tomados dos prisioneiros no IPM e no IPL, foram desprezados por todos, inclusive pelos próprios advogados defensores dos sem terra, haja vista que durante o júri, nenhum camponês foi ouvido.
(13) Autos folha 4.941.
(14) Existia uma comissão de negociação designada pelo governador composta pelo deputado Daniel Pereira, por um representante do INCRA, por representante do Instituto de Terras de Rondônia (ITERON) e o secretário do executivo. A comissão esteve no acampamento no dia 30/07 e estava tentando resolver a questão, mas segundo Daniel Pereira a comissão não teve tempo suficiente para agir.
(15) Nos autos, as folhas que aparecem com a descrição das armas tanto da PM quanto as recolhidas dos posseiros tem o número: 5923, 5924, 5926 e 5225. No IPL as folhas aparecem com a numeração : 2247, 2248, 2249 e 2250.
(16) Entrevista em 28/05/99 em Colorado do Oeste.
(17) MARTINS, José de Souza . Revisando a questão agrária. In Boletim do Militante, nº 27, dezembro/96. p. 30-57.
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E-mail: helena@wgo.com.br.
© Copyright Helena Angélica de Mesquita, 2002
© Copyright Scripta Nova, 2002
Ficha bibliográfica
MESQUITA, H. A. de. Corumbiara: o massacre dos camponeses. Rondônia/Brasil 1995. Scripta Nova, Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales, Universidad de Barcelona, vol. VI, nº 119 (41), 2002. [ISSN: 1138-9788] http://www.ub.es/geocrit/sn/sn119-41.htm
quarta-feira, 7 de novembro de 2007
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